Sem festa no dia 2, devotos encontraram formas de saudar Iemanjá

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Foto: Manoela Cavadas

Os primeiros fogos puderam ser ouvidos às 5 horas da manhã, com o anúncio da alvorada dos pescadores. Uma hora depois, no entanto, a praia do Rio Vermelho ainda estava vazia. Os tapumes e a Guarda Municipal garantiram que nenhuma das pessoas em branco e azul conseguisse passar. Em mais um ano da pandemia, Salvador não fez festa para Oyá.

Se antes, nesse horário, já havia multidão, agora na mureta estão apenas os remanescentes da noite anterior e alguns dos devotos que madrugaram. O som, que costuma ser dos atabaques e do agogô, é substituído pelo barulho do mar. Mas tem o que fique: “Tomar um axé, meu amor, venha”, chama a baiana. Ainda é dia Dois de Fevereiro.

Apesar das restrições da Prefeitura de Salvador, para evitar a proliferação da Covid-19, foi mantida a entrega do presente principal ao mar. Neste ano, uma escultura em formato de cavalo marinho para trazer união e prosperidade. “O cavalo marinho vem do mar. É um fruto que pertence aos pescadores. É de fartura, cultura, alegria, de amor, união. E é próspero”, explica o babalorixá Pai Ducho, do terreiro Ilê Axé Awa Ngy, responsável pela elaboração do presente pelo segundo ano consecutivo.

Na plateia, sem encostar os pés na areia, o público, reduzido, aplaude a entrega da escultura à Rainha do Mar. Eles são turistas, soteropolitanos, do axé ou sem crença alguma, aniversariantes do dia, filhos de Iemanjá, netos seguindo a tradição de avós, visitantes de primeira viagem e pagadores de promessas.

O pescador Jorge Amorim, ou Azul, como é conhecido pela cor do olho, conta que tem toda relação possível com a mãe das águas. Ele mesmo nasceu na praia, assim como o filho, no Alto da Sereia — há alguns metros de onde Iemanjá é celebrada anualmente. “Ontem mesmo, por incrível que pareça, não pedi. E fiz o que não faço. Eu geralmente só como coisa que pego nas pedras, mas eu vinha passando ali na beira da praia e encontrei um rodeão grande, vivo, que peguei de mão. Aí já levei para casa”, conta, ligando o feito ao orixá.

O antropólogo Marlon Marcos, filho de Iemanjá, fala da proximidade dos baianos com a festividade. “Essa ideia de ser baiano é que nós estamos à beira do mar da Bahia. Dentro das narrativas de ketu, Iemanjá é mãe de todas as águas, mãe dos peixes, mãe das vidas e aqui no Brasil passou a ser mãe da água salgada. Para os africanos, não é que o mar seja elemento pertencente a Iemanjá. É que o mar é a própria. Esse mar que banha a cidade de Salvador dá um tempero, modifica o nosso comportamento, somos socializados nele. Ela é nosso mar, e como oceano ela nos dá feição. A gente entra no mar e a gente se benze”, analisa.

Segundo Marlon, a festa do dia dois de fevereiro ganhou uma proporção tamanha que tornou Iemanjá a festa mais potente do candomblé, por ter se distanciado de qualquer tutela com a Igreja Católica. “Ficar sem essa festa é ficar num estado de luto, num aspecto de tristeza. Ficar sem isso é como se a gente perdesse um pouco da nossa identidade, da nossa força como povo”, explica o antropólogo.

Devoção 

É por essa relação forte que Maria da Penha, já com 52 anos de prática no Candomblé, vai à praia entregar pelo menos um balaio desde que sua filha, Jane, nasceu no dia 2 de fevereiro. Ela e o marido Pedro ainda pagam a promessa a Oyá, mesmo depois da filha já ter partido para o Orun. “Todo ano eu venho trazer o presente dela, oferecer às águas. Dá aquela emoção, é uma energia…”, diz a baiana de acarajé, sem conseguir explicar em palavras exatamente o que sente.

Já Sandra Nascimento, que também nasceu no dia 2 de fevereiro, aproveita o clima para celebrar seus 58 anos. Ela e a filha Dandara, finalista da Deusa do Ébano do Ilê Aiyê, comemoram e chegam a ser paradas por turistas para tirar fotos. As duas mulheres negras posam em frente à escultura de Iemanjá negra, no Largo da Mariquita. “Eu tô toda feliz. Hoje não durmo. É um dia de celebridade”, brinca Sandra.

“Desde os seis anos de idade que eu venho. É tradição da minha avó, que passou para a minha mãe, que passou para mim e assim vai. Com festa ou sem festa, a gente tá aqui”, conta a aniversariante.

A falta de festa também não impediu os turistas de vestirem azul e se aproximarem da Colônia de Pescadores. Messias Dieb, de 52 anos, e Gustavo Albuquerque, de 32, participaram pela primeira vez da homenagem. O casal, natural de Pernambuco, já havia participado de festejos em Recife, mas eles resolveram esticar a viagem de férias para passar o 2 na Bahia.

“Justamente por ser nossa primeira vez aqui o sentimento de frustração é muito maior por não estar tendo a festa. Mas a energia que se sente é muito boa. Senti algo muito bom ao receber a benção das baianas, mesmo não sendo dessa matriz religiosa. Bênçãos são sempre bem vindas”, diz Messias.

Sem poder descer para molhar os pés na água, boa parte dos devotos cortou caminho até se aproximar de um trecho da praia sem barreiras. No trajeto, uma propaganda fazia questão de lembrar a razão do cancelamento da festa: “Testes para Covid-19. Entrega de exames em até 24h”, estampava a placa.
Fonte: Metro1

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